Hoje, fiz uma viagem ao passado. E embora a palavra nos diga isso mesmo, passado (acabado), a verdade é que ao visitar aquele edifício de um passado distante, veio a mim o aroma do leite em pó, da sopa de feijão branco e da sopa de grão de bico com esparguete. Parada naquela porta já gasta pela idade, senti passar pela minha garganta o soluço daquele vómito a óleo de fígado de bacalhau, ao mesmo tempo que lançava os meus olhos àquela cantina outrora decorada, ainda na minha memória, de azulejos com desenhos de frutas, sendo a mais recordada a romã, fruta rara naquela época para mim.
Tudo estava praticamente na mesma, mas vi-me naquele recreio, de mãos dadas numa silhueta redonda a brincar à cabra-cega, ao “fui ao jardim da Celeste”, ao jogo do prego e tantas outras cantigas daquele tempo. Vieram as lembranças daquele escorregão em terra, e de como rompia a roupa.
Enfim, eram apenas lembranças de um passado que passou.
Deitei um olhar sobre aquele pátio, e o calafrio foi inevitável. Via os sanitários, chegaram-me como um relâmpago à memória. Eram-me assustadores naquele tempo, com aquele buraco infinito, redondo, virado à terra. Naquele momento, quase os sentia a sugarem-me num desaparecimento repentino, temeroso. Amedrontavam-me imenso quando tinha que ir… era a necessidade urgente. Tinha medo de ser engolida, ou que algo estranho subisse por ali.
Estava com o meu pensamento naquele passado, mas sentia-o tão presente nesse momento.
Percorri todo o espaço da escola primária e toquei na aldraba da porta frontal, e ouvi, com ouvidos de ouvir, aquele bater inconfundível!
Talvez fosse uma mãe que vinha em defesa do filho, ou quiçá viesse ajudar a senhora professora a puxar mais um pouquinho as orelhas do menino. Talvez fosse a mãe da menina que fazia xixi na carteira*, poderia ser a mãe do outro menino, aos meus olhos um gigante que se encontrava sozinho na (carteira), a mais alta da sala, ao mesmo tempo que o menino gigante via todos os outros meninos a passar de ano por ele. Pois o menino grande não conseguia escrever a palavra batata.
Talvez fosse o dia em que a mãezinha, a senhora fulana, vinha acompanhar o filhinho na prova escrita daquela folha longa, de dobra no lado esquerdo, escrita a tinta permanente, para evitar os borrões escandalosos!
Talvez fosse o dia de escrever no caderno diário extremamente imaculado! Cadernos que ainda hoje possuo, interessantíssimos de capa grossa colorida.
Talvez, fosse alguém a bater à porta para trazer as picas, como lhes chamava a senhora professora.
Ai que horror! Duas senhoras vestidas de branco, acompanhadas de umas caixinhas metalizadas, quando abertas continham uma seringa enorme!…
Vá lá meninos… uma fila… e de bracinhos descobertos, e lá vinha a espetadela, de um a um, com o mesmo objeto… terrível!
De repente naquela porta principal, vi-me sentada naqueles patins de escada com a minha professora, que carregava o mesmo nome que eu, a jogar o jogo das pedrinhas enquanto os meninos e meninas corriam pelo recreio a brincar uns com os outros.
Via-os a todos, até aquelas meninas maiores do que eu, a transportarem-me ao colo, para que eu pudesse chegar ao quadro preto com giz branco.
Eu senti-vos a todos, a todos os cheiros, e todos medos. Senti o senhor elegante e benfeitor, que chegava de carro com uma boca de sapo. Era um momento especial e uma viatura também muito especial. Talvez por isso eu nunca me esqueci daquele boca-de-sapo, e parecia isso mesmo. O senhor tinha conversas longas com a senhora professora e era uma satisfação enorme para nós, ela estar entretida.
Foi uma viagem ao passado que já passou.
Mas quem foi que nos disse que águas passadas não moviam moinhos!?
Eu sentia-os a todos, senti todos os cheiros, todas as brincadeiras e todos os medos.
Ilda Pinto Almeida (A propósito da promoção do seu mais recente livro “Daniel e a cadelinha Azeitona”, visitou algumas escolas, uma das quais a da sua infância. Fica o relato e a nostalgia.)